Era noite. Chovia uma chuva fina
e constante em meu rosto. A água escorria pelas valetas das calçadas,
arrastando toda a sujeira deixada pelos transeuntes em pequenos riachos em
direção aos ralos daquelas irregulares ruas de paralelepípedo.
As ruas estavam pouco iluminadas,
com as poças refletindo a luz dos postes que piscavam em um ritmo inconstante e
atraiam os cupins em direção a elas. Cada passo em cada beco ressoava pela
escuridão, e nas esquinas os bêbados e meliantes se aglomeravam tais quais
moscas em uma pilha de lixo.
A sensação de constante déjà vu estava simplesmente me
enlouquecendo. De onde eu conhecia aqueles becos? Aquelas vielas... Sim, claro!
Era a rua do meu antigo colégio, do Pedro II! Mas...
... Eu estava fugindo. E tinha que correr mais rápido, pois eles
estavam me alcançando.
E quem eram eles? Eu não conseguia lembrar, mas ouvia seus passos. Rápidos
passos, rasteiros e estridentes, aquele som de pegadas fazendo splash, splash, splash nas poças indo em
minha direção cada vez mais rápido... Pude apenas fugir sem ter tempo de olhar
para trás, com a visão embaçada pela chuva e o frio arrepiando minha
espinha.
Para qualquer lugar... Rápido!
Tinha certeza que eles iriam me
matar.
Virei à esquerda em um beco. Pulei
pelas mesas de um botequim, derrubando cerveja pelo chão. Consegui desviar de
um carro que vinha em alta direção com um pulo cheio de destreza. Gritei para
que as prostitutas e os viciados abrissem caminho pela escuridão enquanto
tateava e tentava me orientar pela neblina daquela noite completamente
peculiar, tão estranha e familiar ao mesmo tempo.
Mas... Falhei.
Na última esquina, em uma pisada
em falso, tropecei e caí no chão completamente torpe. Tentei me levantar rapidamente,
mas os paralelepípedos deixavam a rua escorregadia demais. Minhas mãos
vacilantes, já dormentes devido ao frio, não me davam mais firmeza e não
conseguia me levantar. A verdade é que já estava cansado. Cansado da chuva,
cansado de correr, cansado de ser um rato encurralado.
Levantei devagar com a certeza de
que seria morto em breve. Em vão, tentei me secar batendo com as mãos em meu
corpo e tirando o excesso de água de chuva de meu rosto. Meu óculos jazia ao
meu lado, quebrado em mil pedaços. Minha mão sangrava e...
"Espere um instante..."
Minhas mãos... Elas estavam... Embaçadas. Mais do que isso, elas
estavam completamente disformes. Meus dedos pareciam que estavam debaixo d’água,
e a cada segundo a quantidade deles mudava. E meu relógio... Não conseguia sequer
ver que horas eram. Os ponteiros não seguiam um padrão lógico e estranhos
símbolos ocupavam o lugar onde deveriam estar os números. Ele parecia
simplesmente escorrer pelo meu pulso, tal qual um quadro surrealista do
Salvador Dalí.
Nada mais fazia sentido
Nada mais fazia sentido
Fiquei completamente estarrecido
com aquilo. Tão imerso em devaneios que parei de prestar atenção no incessante
e inevitável aproximar dos passos dos meliantes para dedicar minha atenção a
que poderia significar essa cena completamente bizarra. Então, puxando em
lembranças escondidas no meu subconsciente, oriundas de cultura pop da internet,
filmes blockbuster ou de livros de
escritores renomados... Uma coisa muito forte surgiu em minha mente. “Uma ideia”, diria Dom Cobb.
Pisquei e o dia tornou-se noite.
Pisquei novamente e a noite tornou-se dia. Com um pouco de esforço, flutuei um
palmo no ar.
- AGORA A GENTE TE PEGA, SEU
OTÁRIO! – ouvi uma voz masculina gritar atrás de mim, acompanhada de mais
gritos semelhantes. Virei-me devagar e meu campo de visão foi tomado por uma
gangue de flamenguistas encapuzados empunhando barras de ferro.
“Você poderia ter sido mais criativo, seu subconsciente cretino” pensei
com meus botões e um sorriso sinistro brotou em meu rosto.
- Me desculpem, – disse calmamente
para a gangue que desejava meu sangue – mas vocês tem a mínima ideia de onde
vocês estão?
- A GENTE TÁ NA NOSSA ÁREA, SEU
OTÁRIO! VOCÊ INVADIU O MOVIMENTO, AGORA A GENTE VAI FUDER CONTIGO – Esbravejou o
mulambo líder.
Tudo que pude fazer era rir da petulância
do flamenguista. “Maldito subconsciente,
nem enquanto estou dormindo você para de me sacanear... Mas agora será
diferente” pensei novamente. Estava completamente excitado pela empolgação,
ou empolgado pela excitação. Tanto que tudo que consegui fazer diante da última
fala de meus até então captores foi dar uma gargalhada que ecoou por todos os
becos escuros das redondezas.
- Não, meus caros... he he he. Vocês
estão no meu sonho. E aqui quem fode vocês SOU
EU!
Acompanhado de meu último grito
veio uma tempestade de grandiosas proporções. Tufões se acumulavam perto dos
meliantes, relâmpagos e trovões ofuscavam e rasgavam o céu. O chão se abriu e o
magma reluzente vazava de onde antes havia apenas água de chuva. Tudo a minha
volta desmoronava. Era assustador, sublime e extraordinário.
A sensação de sair do lugar de
caça e me tornar caçador me deixou completamente alucinado.
- E NÃO ADIANTA FUGIR! – gritei para
os quatro cantos – POIS VOCÊS NÃO TÊM PERNINHAS PARA CORRER!
Como num passe de mágica, todos
meus algozes perderam as pernas. Tentaram rastejar gritando como garotinhas
indefesas, mas o magma já havia se espalhado Decidi acionar o fundo musical
tocando ao fundo “É, você é um negão de
tirar o chapéu... Não posso dar mole senão você CRÉU”. Achei digno.
- E VOCÊ – apontei para outro
marginal, enquanto voava ao seu encontro – VOCÊ NÃO É MAIS UM BANDIDO! NÃO,
VOCÊ É UMA... BAILARINA!
Um raio verde saiu de meu dedo
indicador, e ao acertar o marginal fez um barulho de estática ensurdecedor.
Onde antes havia um marginal, agora havia uma bailarina de caixinha de música
ao som de “Lago dos Cisnes”, treinando de frente para um espelho.
- E VOCÊ É UMA STRIPPER! – zium, outro raio – NÃO, UMA STRIPPER
BONITA! – zium! - E VOCÊ É UM MACACO MORDOMO!
VOCÊ, UMA JAPONESA RUIVA! VOCÊ, JIMMY HENDRIX! FALAÊ ALCIONE! COMO VAI, TIM
MAIA? OLHA LÁ OS MAMONAS ASSASSINAS!
Zium, zium, zium, zium, zium, zium!
Voei para longe para admirar
minha criação. No meio de toda a destruição criada pela minha mente doentia e
vingativa, estava o fruto de minha escrotização. Uma bailarina fazendo demis pliés e grand pliés incessantemente, uma stripper super gata fazendo pole
dance num poste envergado pela destruição, um dueto da Alcione com o Jimmy
Hendrix, os Mamonas Assassinas rindo pra cacete de tudo que estava acontecendo
e a japonesa ruiva tentando fazer o macaco mordomo parar de apertar a bunda
dela.
Chorei. Lágrimas de alegria. Ou de tristeza por saber que ia
acabar. Nunca saberei.
Já havia brincado demais de ser Deus. Era hora de começar a
aproveitar um pouco a minha habilidade que só antes havia visto em jogos de
computador. Decidi aproveitar e relaxar um pouco e fiz um anúncio.
- ACALMEM-SE TODOS! ISSO É APENAS UM SONHO, ENTÃO DECIDI QUE
HOJE SERÁ MEU ANIVERSÁRIO. POR TAL MOTIVO, DAREI UMA FESTA. O INGRESSO SERÁ APENAS
MEIA HORA DE ADORAÇÃO PARA O DEUS DO MEU SUBCONSCIENTE. EU!
Zium!
O dia ficou claro. Lindo, na verdade. Um calor agradável no
ar deixou todos que estavam no convés confortáveis para tomar um sol enquanto o
macaco mordomo servia drinks deliciosos e refrescantes para meus convidados.
Todos estavam felizes e não havia nem sombra de meliantes nas proximidades, o
que gerou um conforto muito maior para todos.
De repente, estávamos todos no cruzeiro do Roberto Carlos
rumo às Ilhas Gregas para comemorar meu aniversário. E eu... Voava bêbado pelo
céu, rindo demais de tudo aquilo.
Isso, meus caros amigos... Isso sim é um sonho lúcido.
3 comentários
Write comentárioscaara. valeu a espera. uma criatividade tão louca pra mim tem algo de o guia do mochileiro das galaxias. e isso é um elogio. :)
Replyhahahaha Ehg às 9:00 pra mim, eu morrendo de sono: "Letícia, eu tive um sonho dentro de um sonho"
ReplyEu: "Ah... Legal..."
Ehg: "Só que eu ta lúcido... aí eu me vinguei!"
Letícia (pensando): "Que diabos??? Se vingou de quem! Do sonho???"
Letícia (falando): "tá bom" - Volto a dormir
Hahahahaha Espero que o sonho nao tenha sido assim mesmo... pq nem Freud vai conseguir explicar!
O mais incrível é conseguir refazer a cena exatamente na minha cabeça. Demais!! Só não entendi essa fixação pela Alcione.
ReplyComente sem anarquizar, por favor. Aqui não é casa da mãe Joana. EmoticonEmoticon