A Saga da Autoescola - Cap. I

Sem medo de machismo, afirmo que o sonho de todo homem é aprender a dirigir. 

O desejo surge de repente e é por puro instinto. Tal qual um salmão sobe as correntezas do rio ou as gaivotas migram graciosamente para o sul quando chega o tenebroso inverno, o homem pensa “Cacete... tá na hora de aprender a dirigir, rapaz...”. 

Eu me lembro como se fosse ontem o dia em que meu “relógio biológico automotivo” despertou. Lembro-me bem, pois foi como adentrar nos nove círculos do inferno. Mas ao contrário de Dante, minha comédia não tinha nada, mas absolutamente NADA de divina. 

“A Saga da Autoescola”, finalmente revelada para o mundo, é minha Escrota Comédia.

Em um belo dia de janeiro, tão belo quanto outro qualquer, eu e Gorda (um amigo da empresa em que trabalhava) estávamos retornando do almoço para o escritório. Caminhávamos conversando sobre coisas deveras relevantes, tendo devaneios filosóficos e debates culturais. Numa dessas orações, meu amigo Gorda apropria-se de todo o seu lirismo nilopolitano e diz: 

- Cacete... Tá na hora de aprender a dirigir, rapaz. Vou entrar na autoescola.

"Auto escola. Auto... Escola. Au... To... Es... Co... La... DING!"

Proferindo tal sentença, Gorda despertou em mim o instinto de aprender a dirigir. E, mais do que isso, despertou em mim o OBJETIVO de aprender a dirigir. Afinal, já tinha 21 anos, não devia nada a ninguém, meu CPF era limpo e não tinha absolutamente nada melhor pra fazer. Então, nesse mesmo dia, fizemos o pacto de tirarmos a carteira de habilitação.


Tornou-se uma obsessão.


Pesquisei autoescolas perto de meu trabalho por pura conveniência e selecionei três para visitar depois do expediente. Sabia que em Botafogo, uma zona um pouco nobre do Rio de Janeiro, não encontraria nenhuma com preço de encher os olhos. Na verdade, esperava por uma bela de uma FACADA na carteira. Logo, o critério para escolher onde me matricularia seria obviamente o preço.

Fui à primeira autoescola, a mais próxima de onde trabalhava. Ficava no segundo andar de um edifício comercial. Subi a grande escada, abri a porta e dei de cara, do outro lado do balcão, com um homem muito semelhante ao estereótipo que temos do pé grande.

- Boa tarde, meu caro amigo, funcionário deste formidável estabelecimento de ensino de condutores – saudei.

- Bas tarde – resmungou o mongol gigante. 

- Gostaria de saber quanto custa para tirar a carteira aqui. 

- Tá dois mil real a vista mais taxas do DETRAN. Parcelado sai dois pau e quinhentos.

“PUTAQUEPARIU!!! Dois mil reais? À VISTA??? Tá de sacanagem, cara???” - retumbaram todas as minhas células em uníssono.

- Opa, valeu fera, vou lá – Saí do estabelecimento, feliz por ainda ter controle sobre meus pensamentos e permanecer impassível quando chocado por tais preços inacreditáveis. 

Estava completamente abalado com o preço cobrado pela auto escola. Dois mil reais era uma quantia completamente fora de qualquer padrão que poderia SONHAR para me matricular. Na verdade, era uma quantia que eu sequer TINHA disponível em meus fundos de investimento (leia-se “caixa de sapatos debaixo da minha cama”).

Eu tinha que procurar mais. Eu tinha que procurar melhor.

Compareci à segunda autoescola que constava em meus alfarrábios. Um estabelecimento mais simples que o primeiro, porém tão caro quanto. Mil e novecentos reais à vista e dois mil e trezentos parcelado.

Estava completamente arrasado, derrotado, me sentindo a tão deplorável quanto o filete de lama que corre entre o meio fio e o asfalto, rumo a um esgoto de decepção causada pela minha miserável conta bancária e minha inabilidade em guardar dinheiro para situações desesperadoras.

“Calma, Ehg. Não se desespere. Ainda há mais uma autoescola. Acalme-se.”disse meu cérebro, provando que ainda não havia entrado em colapso. Agradeci, pois sou tão hábil em lidar com frustrações causadas pela impossibilidade de cumprir objetivos pessoais quanto guardar dinheiro. Chamo essa minha habilidade em ser inábil de “destreza canhota”.

Então andei. Andei, andei, andei e cheguei à terceira autoescola. Um estabelecimento simples. Bem pequeno. Humilde. Na verdade, sendo bem sincero, uma merda de lugar. Mas, na atual conjuntura, não custava tentar. Estava desesperado.

Ao entrar na autoescola, fui surpreendido por um aluno extremamente irritado discutindo com a secretária, dizendo coisas do tipo:

- MAS ISSO É UM ABSURDO! NÃO CONSIGO FAZER AULAS PRÁTICAS NESSA PORRA DESSA AUTOESCOLA! MAS QUE INFERNO É ESSE?

Ignorei o aluno, pois clientes insatisfeitos existem aos montes, em todo tipo de estabelecimento. Por que numa simples e inocente autoescola não haveria também? Esperei a discussão acabar e me dirigi à secretária.

- Olá, prezada secretária, interlocutora do estabelecimento, guardiã dos telefones. Quanto custa para me matricular e tirar a carteira de habilitação aqui? 

- Oi. Até sexta feira, estamos tendo uma promoção especialíssima! A carteira com aulas teóricas, práticas, material didático e aluguel do carro para prova estão saindo por setecentos reais à vista e blablablablablabla... 

Gostaria muito de poder detalhar o que ela disse após “setecentos reais à vista”, mas minha mente estava focada em que linha do contrato eu tinha que assinar para me matricular.

Só setecentos reais. Não tinha como haver problemas. Seria só alegria. Matricularia-me e em pouco tempo estaria habilitado.

Porém não. Fui inocente, fui ingênuo, fui garoto. Fui, acima de tudo, burro.

Cego pelo preço baixíssimo cobrado pela autoescola, deixei de observar sinais primordiais que me permitiriam prever os fracassos e frustrações que tal estabelecimento reservara a mim.

Um lugar de merda, literalmente caindo aos pedaços.

Um aluno frustrado por motivos que sequer procurei me aprofundar.

Um preço completamente fora do mercado.

Um senhor de capa vermelha e cartola no fundo da autoescola, escondido nas sombras, de pé em cima de um pentagrama, comendo pipoca, me olhando e dando gargalhadas. Sombrias gargalhadas. Mas isso eu acho que foi apenas impressão minha.


IÉ IÉ!

Assinei o contrato de serviço com a autoescola como quem assina um contrato vendendo sua alma, ignorando as letras miúdas e todos os ingredientes que, misturados, com certeza fariam uma refeição de merda. 

Paguei os setecentos reais. À vista, em dinheiro.

E assim embarquei na minha odisseia.
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