O dia que eu morri

Quem lê o site sabe que eu já fiz muita coisa nessa vida.

Ou melhor: A vida já fez muita coisa comigo.

Já colei a mão na cara. 
Já briguei com um Testemunha de Jeová no meio da rua.
Já fui tarado por uma velhinha.
Já fui atacado por um bando de quero-queros ensandecidos num cemitério na Zona Oeste do Rio de Janeiro.
Já fui atropelado por um boi (sim).

E quando digo que já fui judiado de tantas maneiras diferentes pela vida, normalmente a reação das pessoas é fazer um bolão com a data da minha inevitável morte. Afinal, nada mais justo que um jogo de azar com meu azar.

Porém, tolos e inocentes, criaturas pueris e garoteantes. Mal sabem todos vocês que eu já morri.

Essa história ocorreu há tempos atrás, quando eu ainda morava sozinho.

Ah, morar sozinho... A liberdade de chegar em casa após o trabalho e assistir ao futebol de quarta-feira bebendo uma cerveja gelada, vestindo apenas a cueca e sem precisar falar com ninguém, é a justificativa de nosso ancestrais terem lutado tanto pela liberdade.

Saudades. De morar sozinho e de meu time jogar às quartas.

Numa dessas quartas-feiras, ao sair do trabalho, resolvi assistir ao futebol com uma amiga num bar próximo ao local em que eu morava. Meu time ganhou, ela estava de bom humor, e o resultado foi uma bebedeira filha da puta com o suave adendo de diversas batatas, linguiças e cebolas, todas provavelmente fritas no mesmo óleo e quiçá ao mesmo tempo.

Para quem não é acostumado a essa vida de gastronomia de boteco ou pé sujo, eu vou tentar sintetizar rapidamente como funciona o esquema.

Os alimentos são sempre os de pior espécie, em sua maioria fritos em quantidades industriais de óleo. Oléo, esse elemento fundamental em qualquer uma dessas famigeradas cuisines, são trocados uma vez em cada equinócio e provém de duas fontes: suor de marinheiro ou diesel. Todos os quitutes são, impreterivelmente, fritos simultaneamente a partir do princípio de que um tempera o outro.

E, surpreendentemente, tais manjares sempre ficam ótimos com cerveja. E só com cerveja.

Após horas de conversa e de ter ingerido quantidades de alimentos e bebidas cuja qualidade fariam nutricionistas chorarem, resolvi ir para casa e ter meu merecido descanso após tanto sacrifício. Andei cambaleando em direção ao apartamento, bebi um gole da cachaça do porteiro e, após algumas tentativas e certa dificuldade, consegui achar a chave e abrir a porta.

Mas, de repente, algo aconteceu.

Ao adentrar no apartamento, senti uma pontada fortíssima no lado esquerdo do peito. Forte pra caralho, algo que parecia uma facada entrando no meu coração.

Respirei fundo para ver se passava, e, obviamente, não passou.

Para tornar tudo mais interessante, o meu braço esquerdo simplesmente adormeceu-se por completo.

Por ser hipocondríaco a ponto de confundir resfriados com pneumonias e espinhas com tumores, eu simplesmente entrei no maior pânico de toda a minha vida.

Me estatelei seminu no sofá, sentindo tudo girar e prometendo a mim mesmo que nunca mais beberia na minha vida (rsrsrsrs). Com todas as luzes acesas, com todos os carros buzinando na movimentadíssima rua ao lado, com todos os vizinhos do prédio brigando, eu fechei os olhos e adormeci como uma criança.

Quando acordei, tudo estava completamente escuro.

Todo o meu apartamento encontrava-se às sombras, e meu prédio não emitia nenhum sinal luminoso. A penumbra me cercava, sendo impossível enxergar um passo adiante.

Esperei meus olhos acostumarem-se a escuridão e, um pouco incomodado, resolvi ver se algo havia acontecido na rua.

Entrei em desespero quando vi uma leve neblina tomando conta do ambiente. Não havia uma alma até onde os olhos podiam ver, fossem carros ou pedestres.

A principal rua do Flamengo estava em completo silêncio e escuridão, tomada pelas trevas.
Tentei ligar a televisão para ver se algo acontecia, mas tudo que ela fazia era emitir um leve chiado.
O telefone fixo estava mudo e meu celular estava sem sinal, impossibilitando-me de entrar em contato com o mundo exterior. Ainda assim tentei enviar mensagens para minha amiga perguntando se algo havia acontecido. Em vão. Pudera.

Sentei na janela do apartamento e cheguei a óbvia conclusão.

"Puta que pariu. Como eu morri escroto. Morri foda."

Imediatamente as lágrimas começaram a rolar perante tamanha injustiça desse mundo cão.

Eu, um rapaz latino americano, com um futuro brilhante pela frente, seria encontrado morto no sofá vestindo nada além de uma cueca (que sequer era bonita), exalando um cheiro que misturava álcool com frituras, cujo resultado da autópsia revelaria que a causa mortis seria, logicamente, um ataque cardíaco fulminante causado pela cachaça daquele porteiro filho da puta.

Sim. Eu havia sido mais uma vítima de envenenamento, um índice a mais no quadro indicativo de vitória das recalcadas nesse mundo onde as inimigas ainda caminham livremente.

E o pior de tudo: eu ia levar um esporro fudido da minha mãe.

Sentei na janela e me perdi em devaneios, deixando minha mente recém morta viajar. Quais seriam os próximos passos agora? Será que no céu havia um espacinho para pessoas que são assassinadas pelo proletariado? Será que eu ia aparecer no Cidade Alerta? Provavelmente não, pois não foi uma morte com sangue. Isso era algo bom?

No meio da neblina, um saco vazio começou a ser levado pelo vento e, logicamente, lembrei-me da cena final do filme Beleza Americana. A cena é um monólogo otimista de um cara que é assassinado, dizendo que é difícil ficar irritado com essas coisas quando há tanta beleza no mundo.


Refleti um pouco sobre o ocorrido e cheguei a seguinte conclusão:

VAI TOMAR NO CU, BELEZA AMERICANA!

EU LÁ QUERO SABER DA BELEZA DE SAQUINHO VOANDO, CARALHO!?

O PORTEIRO, AQUELE QUE EU DAVA CERVEJA DIA SIM DIA NÃO, HAVIA ACABADO DE ME ENVENENAR MISTURANDO VENENO NA GARRAFA DE CANINHA DA ROÇA!

MAS NÃO É POSSÍVEL QUE EU HAVIA MORRIDO ASSIM! 

EU SABIA - MAS SA-BI-A - QUE EU IA MORRER CEDO, MAS PRECISAVA SER DE MANEIRA TÃO ESCROTA?

MAS EU CONSIGO ATÉ VER A MINHA LÁPIDE!

AQUI JAZ GABRIEL, 21 ANOS, ASSASSINADO PELO PORTEIRO (POIS É) NA MAIOR TRAIRAGEM DA HISTÓRIA DO FLAMENGO. MORREU SEM VIAJAR PARA O EXTERIOR, SEM TER FILHOS, SEM SER PROMOVIDO NO TRABALHO, SEM TER CONHECIDO 01 RUIVA DE VERDADE, SEM FAZER UMA CARALHADA DE COISA QUE ELE TAVA PLANEJANDO, MAS BEM, FAZER O QUE NÉ GALERA? O CARA FOI OLHUDO E BEBEU CHUMBINHO, FICA A LIÇÃO PRA CRIANÇADA.
#PARTIU E É ISSO AÍ, TAMO JUNTO.

E já espumando de ódio, planejando diversas maneiras de assombrar o desgraçado do porteiro, acontece o impensável:

A luz do apartamento volta, o sinal do meu celular também e, o limbo em que eu estava transformou-se novamente no mundo real.

Enxuguei minhas lágrimas e observei o burburinho dos vizinhos, provavelmente comemorando a volta da luz. Liguei a televisão e estava tudo normal, assim como os telefones.

A pontada que senti no peito com certeza foi causada pela quantidade absurda de gordura que ingeri à noite, que com certeza transformou meu sangue em gelatina e forçou meu coraçãozinho a bombear com mais força.

E o porteiro... Ainda era meio filho da puta, mas não por ter me matado (ainda). De qualquer maneira, não beberia mais nada oferecido por ele para não dar chances ao acaso.

O ponto alto da noite com certeza foi minha amiga me ligando desesperada, querendo saber porque eu havia enviado torpedos para ela dizendo que "A CULPA FOI DO PORTEIRO" ou "PEDE DESCULPAS PRA MINHA MÃE".

Foi difícil explicar a história, mas bem...

Eu sei que eu sou burro. Mas às vezes eu só posso estar de sacanagem.

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1 comentários:

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5 de dezembro de 2014 às 00:58 delete

Um adolescente perspicaz eras. Sensacional.

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Comente sem anarquizar, por favor. Aqui não é casa da mãe Joana. EmoticonEmoticon